“SHARENTING”

Saúde

Os riscos da superexposição de crianças nas redes sociais

Foto: Camila Hampf/Hospital Pequeno Príncipe

Hospital pediátrico alerta sobre os impactos negativos dessa prática no desenvolvimento infantil e na segurança de meninos e meninas

Com as redes sociais fazendo parte do cotidiano de milhares de famílias, o hábito de compartilhar imagens, vídeos e momentos da vida dos filhos se tornou algo comum. Essa prática, conhecida como sharenting (termo em inglês que une “share” — compartilhar — e “parenting” — parentalidade), levanta questões sérias sobre privacidade, segurança e bem-estar de crianças e adolescentes. Nesse sentido, o Pequeno Príncipe, maior e mais completo hospital pediátrico do país, alerta sobre os impactos negativos dessa prática no desenvolvimento infantil.
O sharenting e o ECA

É natural os pais sentirem orgulho dos filhos e quererem registrar momentos especiais. Entretanto, a assessora da diretoria da instituição e psicóloga Thelma Alves de Oliveira relembra que antigamente era comum essa admiração ser expressa por meio de álbuns fotográficos, restritos ao círculo familiar. Hoje, as redes sociais transformaram esse ato em algo público e irrestrito, muitas vezes sem a reflexão crítica sobre as consequências. Assim, as imagens passam a ser acessíveis a desconhecidos, sem significado e fora do contexto familiar.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é claro: toda criança tem direito à proteção da sua imagem, identidade e privacidade. Além disso, a lei estabelece que a criança é um sujeito em fase peculiar de desenvolvimento. Ou seja, ela ainda está em formação e não possui maturidade cognitiva ou emocional para consentir com a exposição. Por isso, precisa ser protegida de forma integral pela família, pelo Estado e pela sociedade.
Os riscos do sharenting

Segundo um relatório divulgado pela Children’s Commissioner, em média, uma criança tem 1.300 fotos publicadas nas redes antes de completar 13 anos. Entre os riscos da superexposição estão:

  • perda de privacidade e controle sobre o que é postado, já que conteúdos podem ser salvos, editados, compartilhados e até manipulados;
  • uso indevido dessas imagens por pedófilos e exploradores sexuais, que utilizam fotos inocentes para reproduzi-las em redes criminosas;
  • revelação de detalhes privados do cotidiano, aumentando a ação de criminosos, como risco de sequestro ou perseguição;
  • bullying e cyberbullying, afinal o que parece engraçado hoje pode tornar-se um gatilho de humilhação e comentários odiosos.

Diante desse cenário, Thelma reforça que ainda falta uma regulação mais efetiva das plataformas. “As políticas públicas brasileiras têm respaldo no ECA, mas a fiscalização é limitada. Por isso, a mudança real depende da consciência coletiva. Mesmo que a intenção dos pais e cuidadores seja boa, cabe aos amigos e familiares conversar e alertar para os riscos, bem como reconhecer que até as postagens consideradas ‘fofas’ podem comprometer a segurança e bem-estar da criança”, orienta.
Como a superexposição afeta o desenvolvimento infantil?

Apesar de ser um tema relativamente novo, Thelma salienta que o sharenting é capaz de afetar o desenvolvimento emocional e psicológico e até desencadear transtornos como ansiedade, depressão e distorção de autoimagem. A criança pode desenvolver uma autoestima fragilizada, bem como insegurança, pela quebra de confiança daqueles que deveriam protegê-la. Além disso, pode adotar uma percepção distorcida de si mesma, por achar que precisa ser perfeita na visão dos outros. “A construção de um ‘sujeito perfeito por fora e vazio por dentro’ é um risco real quando a criança não pode errar, experimentar ou simplesmente ser criança, interferindo na formação natural da personalidade”, alerta Thelma.
Dicas práticas para preservar a imagem infantil

Mais do que registrar momentos, é fundamental que os pais e cuidadores estejam emocionalmente presentes e reconheçam o valor dos filhos no cotidiano. “Às vezes, o pai ou a mãe põe a foto na internet, mas não diz para a criança: ‘Nossa, você está linda hoje.’ Então, não podemos perder aquilo que é essencial: a presença e a relação afetiva e significativa”, relembra Thelma.
Antes de optar por compartilhar imagens de crianças e adolescentes, considere adotar medidas de segurança digital. Veja!

  • Reflita: quando a criança olhar a publicação no futuro, vai gostar de ver? Essa imagem pode afetar a sua autoestima? Estou expondo a sua intimidade ou informações privadas?
  • Prefira compartilhar apenas com quem interessa — e que tenha alguma relação com a criança. Esse grupo restrito tende a proteger mais a criança.
  • Nunca divulgue nome completo, data de nascimento, localização ou momentos da rotina.
  • Não poste fotos de crianças não totalmente vestidas e em situações constrangedoras.
  • Sempre peça consentimento a crianças que já demonstram condições de opinar e decidir, antes de publicar.

E os influenciadores mirins: qual é o limite?

Atualmente, a legislação brasileira não acompanha com clareza a atuação de crianças como influenciadoras digitais. Em outros meios, como na TV, o trabalho infantil artístico é regulamentado com autorizações judiciais, limites de carga horária e garantias de que os ganhos sejam protegidos. No ambiente digital, essa proteção ainda é falha — por isso, o debate é tão urgente.

Thelma realça que o problema não está necessariamente no trabalho remunerado, mas na ausência de limites e de estrutura adequada: “Nem toda atividade desenvolvida pela criança é exploração, desde que haja limites e proteção. A criança precisa ter espaço para brincar, descansar, se expressar de forma espontânea. O problema é quando ela vira um personagem, perde a identidade ou a liberdade de ser ela mesma e começa a viver para alimentar uma audiência ou o desejo dos pais.”

Sobre o Pequeno Príncipe

O Hospital Pequeno Príncipe, sediado em Curitiba (PR), é o maior e mais completo hospital pediátrico do Brasil, com mais de cem anos de atuação filantrópica e sem fins lucrativos. Especializado em tratamentos de média e alta complexidade, realiza transplantes de rim, fígado, coração, ossos e medula óssea, atendendo crianças e adolescentes de todo o país, em 47 especialidades com equipes multiprofissionais. Com 369 leitos, incluindo 76 de UTI, realiza a maior parte dos atendimentos pelo SUS, totalizando em 2024 cerca de 259 mil atendimentos ambulatoriais, 20 mil cirurgias e 293 transplantes. Reconhecido como hospital de ensino desde os anos 1970, já formou mais de duas mil especialistas. Desde 2019, participa do Pacto Global e contribui para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Sua atuação em assistência, ensino e pesquisa, alinhada ao conceito internacional de Children’s Hospital, tem transformado vidas e lhe conferido reconhecimento mundial, incluindo ser listado entre os 80 melhores hospitais pediátricos do mundo, o melhor da América Latina por quatro anos consecutivos pela Newsweek, além de receber destaque do Ministério da Saúde em 2024.

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Saúde

Como o compartilhamento nas redes sociais pode afetar as crianças

Revisão conduzida por pesquisadores brasileiros mostra que postar registros dos filhos de maneira excessiva pode comprometer a saúde mental deles e a dinâmica familiar

Por Fernanda Bassette, da Agência Einstein

Foi-se o tempo em que fotos e vídeos que pais fazem de seus filhos são vistos apenas por membros da família. O compartilhamento desses registros nas redes sociais é um fenômeno que até ganhou nome em inglês: sharenting, termo que une as palavras share (compartilhar) e parenting (parentalidade). Contudo, pesar de bem-intencionada, a prática oferece riscos éticos, emocionais e legais para as crianças, que ainda não têm condições de consentir com a própria exposição.

É o que aponta uma pesquisa brasileira, conduzida por estudiosos da UniCesumar, no Paraná, publicada na revista Bioética. Os autores conduziram uma revisão da literatura científica, a partir de 73 artigos publicados entre 2016 e 2023, e traçaram um panorama preocupante sobre os impactos dessa exposição precoce no desenvolvimento infantil.

Esses impactos foram organizados em quatro eixos: privacidade e segurança digital; implicações psicológicas e culturais; dinâmicas sociais e familiares; e resposta societal e legal. A privacidade, segundo o estudo, está sob ameaça desde o nascimento. O compartilhamento de dados como data de nascimento e até condições médicas cria uma identidade digital que pode perdurar para sempre, mesmo que os pais se arrependam e apaguem o conteúdo.

De acordo com o sociólogo Lucas França Garcia, que orientou o estudo, o interesse pelo tema surgiu a partir de discussões em sala de aula. “Decidimos estudar, por meio de uma revisão de literatura, esse fenômeno já conhecido como sharenting e oversharenting. A ideia é conscientizar e contribuir com a prevenção e compreensão da temática no contexto nacional”, relata Garcia à Agência Einstein.

Impactos na saúde mental

Já é comum crianças e adolescentes relatarem constrangimento e desconforto com postagens feitas por seus pais.

“Os sentimentos de frustração e vergonha, aliados à frequente percepção de incapacidade quanto à mudança do cenário em questão, são extremamente presentes entre crianças e adolescentes. A autoestima é impactada pela publicação de fotos e eventos considerados negativos para essas crianças, o que pode repercutir em bullying e constrangimento”, comenta Sophia Ivantes Rodrigues, estudante de psicologia e autora do estudo. “Além disso, a exposição precoce cria uma identidade online que nem sempre corresponde ao que a criança realmente é ou deseja ser”, complementa o orientador.

A psicóloga Ana Lúcia Karasin, do Espaço Einstein de Saúde Mental, do Einstein Hospital Israelita, também observa a complexidade dos efeitos emocionais a longo prazo do sharenting sobre os pequenos. “A exposição digital precoce, mesmo quando bem-intencionada, pode interferir diretamente na construção da identidade, no senso de privacidade e na percepção de segurança emocional dos filhos. Quando essa exposição envolve conteúdos íntimos, os impactos tendem a ser ainda mais significativos, especialmente na adolescência”, alerta.

Para a psicóloga Bianca Batista Dalmaso, também do Einstein, o estudo mostra o contraste entre os benefícios percebidos pelos pais – como apoio emocional e validação – e os riscos muitas vezes invisíveis. “O compartilhamento excessivo da vida privada pode gerar impactos diretos e indiretos no desenvolvimento socioemocional. Pode atrapalhar a construção do conceito de si sem a interferência da opinião ou julgamento dos outros”, avalia Dalmaso.

Dinâmica familiar

A pesquisa brasileira mostra que o sharenting afeta a dinâmica familiar de forma ampla. Conflitos entre pais e filhos e até entre avós e pais – no chamado grand-sharenting – tornam-se frequentes. “O vínculo entre pais e filhos encontra diversas problemáticas frente ao sharenting, como conflitos intergeracionais e distanciamento emocional. Quando pedidos de remoção de conteúdo não são atendidos, a confiança entre os membros da família pode ser abalada”, pontua Garcia. Ele ressalta também que a tentativa dos filhos de educar os pais digitalmente costuma ser recebida com resistência, pois os adultos se sentem desautorizados.

Na visão da psicóloga Ana Lúcia Karasin , o sharenting pode revelar mais sobre as necessidades emocionais dos pais do que sobre os próprios filhos. “Em diversos casos, a exposição da criança nas redes sociais serve como uma forma de afirmação pessoal dos adultos ou ainda para expressar afeto, demonstrar competência parental ou buscar validação social”, analisa.

Crianças com condições médicas ou transtornos mentais estão ainda mais vulneráveis. “A identidade online dessas crianças, muitas vezes, gira em torno da sua condição, o que compromete ainda mais sua autonomia no futuro”, pontua Lucas Garcia.

Como evitar?

Uma dica é os pais se perguntarem sobre suas reais motivações antes de postar qualquer coisa sobre os filhos. “Essa publicação respeita a individualidade do meu filho ou revela mais sobre minhas próprias carências?”, propõe Karasin. “É essencial lembrar que as postagens na internet permanecem. Assim, imagens e informações compartilhadas hoje podem ser resgatadas em contextos diversos, com consequências emocionais e sociais duradouras.”

Bianca Dalmaso sugere um exercício de empatia.

“A dica de ouro para saber se o compartilhamento se encontra excessivo ou não é compreender se aquela postagem respeita a individualidade a criança. Se essa postagem fosse sobre mim, eu me sentiria confortável ou exposto? Muitas vezes, o desejo de mostrar que se é um bom pai ou mãe ultrapassa os limites do respeito à criança”, observa.

Em termos jurídicos, o sharenting ainda é um desafio. Há avanços em alguns países: na França, filhos podem processar os pais por postagens antigas; a União Europeia assegura o “direito ao esquecimento”; nos Estados Unidos, há uma regulação para o uso de dados infantis por empresas. No Brasil, embora o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ofereça diretrizes, ainda falta regulamentação específica.

O estudo brasileiro destaca a urgência de políticas públicas e ações educativas que promovam o uso consciente das redes sociais por pais e cuidadores. “A educação digital é essencial para um caminho mais promissor. São necessários o consentimento e a colaboração de reguladores, educadores, pediatras e demais profissionais. A consciência dos impactos do sharenting, aliada à educação digital, pode reduzir a prática e seus danos”, conclui Garcia.

Fonte: Agência Einstein

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