Opnião

A morte de Clara e a omisssão de uma cidade

“Agosto Lilás” de nada adianta se a população não assume seu papel fundamental na denúncia

O mês de agosto em Valinhos foi pintado de lilás, com campanhas, eventos e discursos oficiais celebrando o combate à violência contra a mulher. No entanto, o que deveria ser um período de conscientização e empoderamento foi tragicamente manchado por uma realidade brutal: o feminicídio de Clara Letícia de Paula Gonçalves, de 26 anos. Sua morte, um grito silenciado no Parque Portugal, expõe a fragilidade de uma rede de proteção que, apesar de existir no papel, falha miseravelmente quando mais se precisa dela.

É assustador e revoltante imaginar que o crime que ceifou a vida de Clara aconteceu na frente de seu filho de apenas 3 anos. O menino, uma vítima inocente da violência que atingiu sua mãe, foi encontrado debilitado e trancado em casa, ao lado do corpo em decomposição, dois dias após o assassinato. O que se esperaria de uma comunidade atenta, de vizinhos que se preocupam? A fria realidade é que, apesar de relatos de gritos e pedidos de socorro ouvidos na madrugada do crime, a denúncia não veio a tempo.

Isso nos leva a uma reflexão desconfortável: o que aconteceu com a nossa capacidade de agir? Vivemos em uma sociedade que, cada vez mais, se fecha em si mesma, temendo se “intrometer” na vida alheia. A omissão, nesse contexto, torna-se uma cumplicidade fatal. Vizinhos, que são a primeira linha de defesa contra o risco, optaram pelo silêncio. Como foi possível que ninguém sentisse falta de Clara por dois dias inteiros?

O “Agosto Lilás” de nada adianta se a população não assume seu papel fundamental na denúncia. As campanhas de conscientização são cruciais, mas perdem o sentido quando a tragédia se desenrola diante de nossos olhos e somos incapazes de estender a mão. As marcas da violência doméstica não se limitam a hematomas; elas se manifestam em gritos de socorro, em olhares de medo, em um comportamento alterado. É claro que não devemos invadir a privacidade alheia, mas ignorar sinais claros de perigo é o primeiro passo para a tragédia. A rede de proteção precisa começar no nosso bairro, na nossa rua, com cada um de nós.

Além da omissão da vizinhança, o caso de Clara reacende um debate urgente sobre a eficácia da Justiça e das políticas públicas. No Brasil, a distância entre uma medida protetiva e um atestado de óbito é, muitas vezes, menor do que se imagina. As medidas protetivas, que em alguns casos são conquistadas a fórceps, só funcionam se houver a denúncia e uma punição exemplar para os agressores. Não basta ter leis; é preciso que sejam aplicadas com o rigor necessário para que a impunidade não encoraje novos crimes.

Apesar da brutalidade que tirou a vida de Clara, é fundamental reconhecer que campanhas como o Agosto Lilás e as atividades de educação e conscientização são de suma importância para romper o ciclo de violência e impunidade. O Agosto Lilás em Valinhos reforça a mensagem de que “violência contra a mulher não tem desculpa. Tem denúncia!”. Essa mobilização não é apenas por um mês, mas um lembrete de que o compromisso precisa ser permanente. O objetivo é claro: mostrar às mulheres que elas não estão sozinhas. Existem serviços e profissionais preparados para acolher, orientar e dar o apoio necessário para quem enfrenta situações de violência, e é esse elo de solidariedade que deve ser fortalecido cada vez mais.

A morte de Clara Letícia não pode ser mais um número na estatística do feminicídio. Seu caso precisa ecoar em Valinhos e em todos os cantos, servindo de alerta para que a morte dessas mulheres não seja em vão. A covardia do homem que se julga dono de uma vida não pode ser a única verdade. A justiça deve ser mais eficiente, a rede de proteção, mais robusta, e a sociedade, menos omissa. O Agosto Lilás só fará sentido se aprendermos, a duras penas, que a violência contra a mulher é uma responsabilidade de todos e que a denúncia é um ato de coragem que pode salvar vidas. Que a morte de Clara seja um marco para que nunca mais uma criança tenha que passar dois dias ao lado da mãe morta, à espera de um socorro que, para ela, chegou tarde demais.

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