Opnião

Nilton Cardoso, meu professor e amigo

Logo que me mudei para Valinhos, cansado da vida cinzenta de São Paulo, um dos primeiros amigos que fiz por aqui foi o Nilton Cardoso. Fomos vizinhos por quase dois anos, época em que frequentei quase diariamente a academia que ele mantinha no Mirante do Lenheiro.
Enquanto penava na esteira, ouvia com atenção as histórias dos prêmios que ele empilhava nas corridas e pedaladas pela região – uma região que eu ainda me ambientava, olhando admirado, pela janela iluminada da academia pela manhã, a vista dos morros da cidade que ele conhecia como ninguém.
O Nilton não gostava só de contar histórias. Gostava também de ouvir as nossas – o que é raro neste mundo em que todo mundo tem muito a falar e pouco para ouvir. Foi assim que descobrimos gostos em comum. Um deles virou a trilha sonora da academia, uma das poucas do mundo que deixavam tocar Belchior e Raul Seixas.
Me mudei de lá, para um outro bairro, no fim do ano passado. Eu andava sumido, mas nunca deixamos de nos falar. Dias atrás, ele contou que participaria de uma prova em Araraquara, onde nasci. “Vamos?”. Não pude ir, mas mandei para ele um roteiro do que fazer na cidade — roteiro que ele cumpriu à risca, mandando fotos, áudios com suas impressões sobre o lugar, inclusive das iguarias do meu restaurante favorito.
No dia 8, um domingo, por algum motivo ele não saiu pedalar, como sempre fazia. Nos encontramos assim, por acaso, no Country Club. Eu estava de saída, mas paramos para botar os assuntos em dia. Coisa de cinco minutos, disse pra Camila, minha esposa. Falamos tanto que quase perdi o almoço em casa.
Em casa, comentei com ela que não conhecia ninguém que não gostasse do Nilton. E que tinha nele uma referência de alguém que ama o que faz e ama onde vive. Naquela semana, tinha entrevistado uma ciclista que me contou como a bicicleta a fazia se sentir parte da cidade, e da natureza, quando pedalava.
Imagino que o mesmo se aplicava ao Nilton: ele se embrenhava pela região, correndo ou pedalando, como quem se funde com a própria paisagem. Não amava só pedalar. Amava estar ali. Amava aquela comunhão. E amava fazer parte de um cenário que ele mesmo descrevia como privilegiado.
O que eu não imaginava era que aquela seria a última vez que nos encontraríamos: no sábado seguinte, soube com um pesar imenso que ele foi atropelado na estrada de Itatiba por um caminhão.
Perdia, assim, um amigo e uma referência, alguém que me fazia (e ainda me faz) acreditar que a vida é, antes de tudo, movimento, é encontro, é convite, é parcerias; é, enfim, uma luta incessante para quebrar a letargia de uma rotina sem sentido na frente da TV e do sofá.
No dia seguinte, pelas homenagens que pipocavam pelas redes, pude dimensionar melhor o quanto meu amigo era querido pela cidade. Foi o Léo, um amigo que ele me apresentou, quem melhor definiu: o Nilton era, antes de tudo, um grande professor, alguém que sentia alegria em ver nossa evolução e compartilhar com os alunos uma espécie de filosofia de vida.
O Nilton, que soube viver como poucos, morreu fazendo o que mais gostava. É clichê dizer isso, e não ajuda a reparar nem a dor nem a perda. Mas é difícil não lembrar do poema do Manuel Bandeira e adaptar ao meu bom amigo: imagino Nilton entrando no céu, pedindo licença, e ouvindo de São Pedro, bonachão: “Entra, Nilton. Você aqui não precisa pedir licença para pedalar”.
Por aqui, seguem os ensinamentos, as lembranças e a voz que ainda podemos ouvir: “vamos, força, você chega lá”. Um dia ainda vamos voltar a correr juntos.

Matheus Pichonelli, jornalista e cientista social, é colunista do UOL e do Yahoo
 

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