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COVID-19: ciência não é opinião, é conhecimento

Durante essa pandemia da COVID-19 nunca se leu, ouviu ou assistiu tantos pronunciamentos, declarações, reportagens e depoimentos em favor da ciência. Isso é bem-vindo, mas algumas observações precisam ser feitas e, talvez principalmente, uma lição pode ser aprendida. Das observações, a principal é que os grupos que até o mês retrasado atacavam e negavam a ciência, continuam a atacá-la e negá-la. Deixam, por exemplo, a terra plana de lado e investem no novo tema com desinformações e teorias de conspiração. Uma segunda observação é a de que muitos dos defensores da ciência, que têm se manifestado, talvez não saibam de fato do que se trata, quando se fala em ciência. A lição que pode ser aprendida é a de que esse estado de coisas pode levar a uma melhor educação sobre ciência.

A ciência, quando admirada, é vista pelo público pelos seus resultados, que vêm moldando, desde o século XIX, o imaginário do que chamamos de progresso. Quase todos pareceram contentes com essa maneira de ver a ciência. No entanto, é uma visão muito restrita e perigosa, pois essa percepção deixa de lado o principal: a ciência é o seu processo de obter os tais resultados que são admirados. Ciência é episteme, não doxa, repetindo assim, com outros termos, o título deste texto.

O que é episteme, segundo o Dicionário Online de Português? “Conhecimento real e verdadeiro, de caráter científico, que se opõe a opiniões insensatas e sem fundamento” E doxa? “Reunião dos pontos de vista que uma determinada sociedade elabora numa dada circunstância histórica, julgando ser uma ação evidente, contudo para a filosofia isso seria uma crença sem comprovação”.

Com esses dois conceitos em mente, cuja utilização empresto (mais uma vez) de Bernadette Bensaude-Vincent em sua análise sobre o abismo crescente entre ciência e público[I], podemos identificar o embate que temos assistido, infelizmente, em torno da COVID-19 em dois aspectos fundamentais: a persistência da negação da absoluta necessidade do isolamento social e a insistência numa medicação providencial, que, no entanto, não existe. Nos dois casos o conhecimento científico(episteme) enfrenta uma dura batalha “contra as opiniões insensatas e sem fundamento” (lembrar a definição acima) no seu papel de informar a sociedade na elaboração de seus pontos de vista. O caso da cloroquina/hidroxicloroquina e similares é emblemático para entender o que é a ciência, com o seu processo de obter conhecimento, e o que ela não é: uma opinião.

A atual campanha pelo uso da cloroquina/hidroxicloroquina, associadas ou não a isso ou aquilo, nasceu com a divulgação ao público de um trabalho preliminar, que sugeria efeitos positivos de tratamento da COVID-19[II]. O que aconteceu? Na época, mas não muito tempo atrás nesses tempos acelerados, o artigo ainda não havia sido revisado, mas hoje está publicado numa revista científica, embora os próprios editores expressassem publicamente ressalvas à qualidade científica ao artigo[III]. Aviso tardio demais para evitar os potenciais problemas. Então o que é e não é ciência?

Em tempos normais, aos quais estávamos acostumados, o artigo do grupo francês provavelmente não teria sido publicado Trabalhos científicos são julgados por outros cientistas para verificar se há erros e se a metodologia e o rigor estão ali inequivocamente demonstrados. E o artigo em questão não demonstra isso: é cientificamente inadequado. Mas vamos em frente e imaginemos que ele tivesse passado pelo crivo e sido publicado. Outros cientistas leriam e, talvez, considerando a hipótese razoável, apesar do trabalho ser ruim, tentariam reproduzir e levar o estudo adiante. Disso sairia um outro artigo e assim por diante. Apenas após muito tempo é que se forma um consenso e só então é que o próximo passo seria dado: desenvolver um tratamento. Palavras chave da ciência: rigor e método. Na urgência da situação e com pressões externas, constrói-se o desafio: como responder a isso? Como dizer claramente que o tal remédio não funciona e, além disso, prejudica? Ou, como poder anunciar que sim, funciona, mas apenas em tais e tais circunstâncias restritas? Como manter o rigor, o método e ser ciência construindo conhecimento e não opiniões? A resposta já está dada: são os mega ensaios do qual participam ou participarão milhares de pacientes em todo o mundo. São os “megatrials” anunciados pela Organização Mundial da Saúde, uma maneira de obter milhares de dados necessários, no menor intervalo de tempo. Sim, é urgente, mas é preciso manter o rigor e o método, senão não é ciência.

Resumindo uma mensagem importante até aqui: ciência para ser usada para o bem comum é um consenso da comunidade científica, construído cuidadosamente com muitos estudos validados pelos colegas anônimos que analisam cada trabalho. Ou, tentando ser mais rápida, com muitos grupos trabalhando ao mesmo tempo para ter os vastos resultados necessários para se construir conhecimento e não opiniões. Ou seja, ciência não é o resultado anunciado de um único trabalho, é a construção de um consenso pela comunidade científica.

O que também se nota nessa época de ciência acelerada é que alguns cientistas, atentos ao rigor, em geral, na sua, muitas vezes diminuta especialidade de pesquisa cotidiana, começam a emitir opiniões insensatas e sem fundamento sobre assuntos científicos que lhe são alheios. Cientistas não tem o direito de preconizar o rigor e o método apenas no seu trabalho. É missão do cientista promover a ciência e seu modo de produzir conhecimento como um todo. Esse valor é universal, não depende da especialidade. Um físico não tem o que dizer sobre protocolos em Biologia Molecular, mas percebe quando o rigor e o método são desrespeitados. Aprendemos também que o público ainda enxerga muitas vezes a ciência como produto de cientistas isolados, que ao darem voz a uma opinião, e não mais ao conhecimento (episteme) que deveriam produzir, tornam-se porta-vozes da ciência como um todo para parte da sociedade. Não, não são porta-vozes da ciência, pois deixaram de agir como cientistas. Por isso, instituições, que raramente se pronunciam durante o debate de teorias e experimentos dentro da comunidade científica, precisam se manifestar, como o fez, por exemplo, por meio de um editorial da prestigiosa revista the BMJ[IV]: “o uso dessas drogas é prematuro e potencialmente nocivo”.

Esses mega ensaios clínicos encontrarão uma resposta para um tratamento? Não sabemos, mas a ansiedade faz com que se queira que a ciência dê uma resposta rápida. Mas respostas rápidas sem as verificações necessárias não seriam ciência, seriam apenas opiniões, que não valem nada e não salvam vidas. Possivelmente matariam mais. E como vão indo esses testes clínicos? Uma análise publicada em 9 de abril de 2020 por pesquisadores do Imperial College de Londres adverte em relação à cloroquina e hidroxicloroquina[V]:

“há muito interesse na cloroquina e hidroxicloroquina para o tratamento da COVID-19, com mais 34 estudos clínicos registrados; no entanto, apenas quatro relatam o uso de protocolos duplo-cego randomizados robustos para investigar a eficiência”.

E já há relatos de hospitais em diferentes países interrompendo os testes clínicos por falta de evidências de eficácia, associadas à manifestação de efeitos colaterais.

Um lembrete histórico sobre o perigo de disseminar medicamentos considerados “mágicos” sem os devidos testes preliminares (que acabam, na grande maioria dos casos, desaprovando o uso[VI]) é a tragédia da Talidomida[VII]. Para tirar dúvidas sobre as inadequações, ilusões e notícias falsas sobre a cloroquina e outras frentes, uma boa fonte é a Revista Questão de Ciência[VIII] Por ora, acrescento um aviso do jornalista Henry Louis Mencken (1880-1956) aos negacionistas e opinadores: “Para todo problema complexo existe uma solução simples, elegante e completamente errada”. Só não se aplica um adjetivo de Mencken: não há nada elegante no que está acontecendo.

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

[I] https://www.researchgate.net/publication/258181323_A_Geneology_of_the_Increasing_Gap_between_Science_and_the_Public

[II] https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0924857920300996?via%3Dihub

[III] https://retractionwatch.com/2020/04/06/hydroxychlorine-covid-19-study-did-not-meet-publishing-societys-expected-standard/

[IV] https://www.bmj.com/content/369/bmj.m1432

[V] https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0165614720300705

[VI] Vejam uma descrição do problema por Derek Love: https://blogs.sciencemag.org/pipeline/archives/2020/04/06/hydroxychloroquine-update-for-april-6

[VII] http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v24n3/0104-5970-hcsm-24-03-0603.pdf

[VIII] https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/2020/04/10/tudo-o-que-voce-precisa-saber-sobre-hidroxicloroquina

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